Sábado, 02 de abril de 2011 na cidade de São Paulo.
Às 8:10 da manhã a rodoviária da Barra Funda já está cheia de gente. Pessoas com malas, apressadas, crianças no colo, risos. É sábado. Dia internacional da alegria, quando todos invariavelmente parecem pensar "ah, se todos os outros dias fossem sábados". O sol brilha lá fora.
Chego um pouco atrasada e encontro com Dinah, companheira de outros trabalhos que reencontro nesta aventura. Esses presentes que a vida dá. Me preocupo com a garrafa de café na bolsa, que podia vazar. Estou apreensiva. Com medo mesmo do que essa manhã vai ser. Procuramos lugares. Lugares em que as pessoas esperam. A primeira sensação é deste lugar de passagem, lugar "entre" destinos. Como habitar o hiato, a lacuna, o meio? Como estar em um lugar em que parece que as pessoas não estão?
Depois de hesitar, escolhemos onde ficar. Há diversas cadeiras, muitas pessoas esperando. Colocamos os copos de plástico e a garrafa em uma mesa de concreto ao lado da cadeira em que me sento; abrimos nossa folha de sulfite escrito em times new roman 60, letras maiúsculas, "um café por uma confidência".
Nos primeiros cinco minutos me sinto tensa e desconfortável. Até que entendi que a questão naquele momento era estar presente. Habitar. Estar ali disponível. Dinah a alguns metros de distância me oferece com seu olhar a confiança, sua presença.
Muitos não me veem. Muitos me veem e fingem que não veem. Muitos dão voltas para me olhar de novo, ou talvez, ler a pequena placa. Alguns mostram leve indignação. O moço a três cadeiras de distância que comia um sanduíche, parecia indiferente. Procuro olhares, por vezes sorrio. Entendo que o nosso ato de coragem, exigia também deles uma tentativa de arriscar. O meu medo era o medo de todos. Temos medo dos encontros. Parece que temos muito medo de viver.
Nos primeiros vinte minutos (eu acho), as únicas palavras que surgem de um moço que passava ali apressado pela segunda vez : "Troco o café por seu telefone".
Procuro estar. Tomo eu mesma um café. E me confidencio que talvez não consiga nenhum depoimento.
Uma senhora bem vestida passa com seu marido procurando onde se sentar. Ele indica uma cadeira ao meu lado, ela diz não (claramente por minha presença ali) e eles seguem. Momentos depois voltam por não encontrarem nenhuma outra cadeira disponível. Sinto que estão curiosos. Mas quero ser rigorosa, não digo nada.
Uma senhora atrás de mim, também se vira constantemente.
Certeza de que algo, naquele lugar, estava acontecendo.
Eis que chega uma senhora, perguntando se seu vestido estava sujo, havia sentado em outra cadeira, não percebeu que estava molhada, talvez fosse mijo, sentou-se ao meu lado.
Eu não consegui não dizer nada. Abandonei o rigor. E disse a ela que trocava um café por uma confidência.
Confidência? Achei que ela não tinha entendido a palavra. Mas recusou o café e me disse que acabara de tomar "um suco de frutas". Eu disse que trocava o café por um segredo, uma história...
Ela pensa. Me diz que tem 74 anos e que viveu muito. Me diz que é de Itaberaba, você conhece? E me diz que vai me contar uma história de sua infância.
Ela tinha seis anos e o irmão quatro. Ela gostava muito dele. A mãe era muito branca e o menino havia puxado a ela, com os cabelos encaracolados. Ela via a mãe chorando porque não tinha nada para dar de comer a eles e pensava "o que eu posso fazer?". Pegava o menino e iam para as roças vizinhas (havia três) procurar o que comer. Pegavam milho, amendoim, feijão. A mãe socava o milho no pilão e fazia quirela. Um dia o menino ficou aguado porque viu uma mulher comendo paio com torresmo. Dias depois quando foi pro médico o coração já estava muito inchado. Não tinha o que fazer.
Ela me conta que gosta da cidade. Que tem três filhos. Que está indo para Ilha Comprida. Gosta de lá, vai a praia, passeia.
O marido chega. Tem 80 anos (mas não parece; tem uma postura elegante, veste chapéu). Ele me conta que teve 23 irmãos. Muitos morreram. Ela diz: Antigamente era assim, tinham muitos filhos.
Ela diz a ele que troco um café por uma história.
Ele diz que não quer café.
Ela vai ao banheiro.
Ele me diz que estão indo para a Ilha, um lugar bom, mas que chega lá e a mulher não sai de casa; não vai a praia, não caminha, às vezes vai ao mercadinho que é bem do lado. Reclama que os filhos não vão.
Me conta que uma vez ali mesmo na rodoviária, ele, a mulher e a filha Deise estavam esperando o ônibus para Ilha Comprida, quando começaram a conversar com uma moça (que tinha uma criança), assim, parecida comigo. Conversaram bastante, a moça comprou uma passagem para Ilha Comprida, foram no mesmo ônibus. Quando chegaram, perguntaram à filha onde a moça ia ficar e ela respondeu "lá em casa". A moça com a criança ficou 22 dias.
Fiquei completamente entregue às histórias desse casal. O rigor foi embora.
Percebi que geramos um movimento ali... Sentia vários ouvidos em torno de nós.
Passava um pouco das nove, eu então me despedi com um aperto de mãos. Ele me pergunta se não vou viajar.
Eu disse que não.
Não perguntei os nomes deles. Me senti um pouco estranha. Como se tivera recebido muito e dado nada.
Mas saí revigorada, como se tivesse feito um aquecimento de muitas horas.
Acho que a presença, às vezes, é só decisão.
Técnica e emoçao. Na realidade é o que a gente procura na vida, na interpretação, na arte, em tudo, é o equilibrio entre a emoção e a técnnica. Quando você encontra o meio disso, está perfeito.
ResponderExcluirMarília Pera
Essa moça parece que precisava de companhia...Como é que vocês ficam assim, na rua, falando com estranhos? Isso é teatro?
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